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Território, Lugar e Riscos Sociais na Opção por Grandes Empreendimentos

Vicente de Paulo da Silva

Desastre de Mariana (MG)

   Os grandes empreendimentos têm promovido profundas transformações no espaço, enquanto o apelo ao discurso tem sido o grande trunfo utilizado para garantir o desenvolvimento desses projetos. Esses discursos visam, muitas vezes, promover o fim do lugar, pois ele é o campo de negociação e de busca de inserção nos projetos de modernização. Inserção aqui assume as mais diferentes formas, não significando apenas ir contra o empreendimento, mas poder opinar a respeito dele e, se necessário, intervir, ainda que contra ele.

    A abordagem do território parte do entendimento de que o mesmo constitui uma dimensão do espaço ou uma construção social na qual as pessoas se reconhecem e se sentem reconhecidas, ou seja, são aspectos da própria identidade. Assim, entende-se que os riscos decorrentes de deslocamentos compulsórios, por exemplo, mais do que tirar pessoas do lugar em que moram e deslocarem para outros lugares, significam uma agressão a uma vida culturalmente experienciada entre o território e o modo de viver das pessoas. Essa mobilidade faz com que se criem sentimentos de perdas muitas vezes ignorados por empreendedores responsáveis pela execução de grandes empreendimentos.

   Esse procedimento também pode, inclusive, levar a aparições de problemas de saúde que antes não eram comuns entre os moradores submetidos a esses processos, como as doenças psicoafetivas, depressão, alcoolismo ou o uso de drogas, dentre outras, enfim, doenças cuja incidência pode estar diretamente relacionada com o fato de se deslocarem as pessoas de suas moradias, ou mesmo pelo fato de verem seus rituais sendo alterados dia após dia.

   No mundo moderno, há muitos sinais de manipulação de territórios e, consequentemente dos rituais simbólicos, que são transformados ou mesmo destruídos, em função da execução desses grandes projetos ou problemas decorrentes de acidentes/desastres envolvendo essas obras. É, por exemplo, o caso das hidrelétricas, cuja formação dos reservatórios exige a inundação de extensas áreas, rurais e ou urbanas e, consequentemente, a destruição dos lugares. É o caso das mineradoras que exigem a construção de barragens de rejeitos as quais colocam em situação de risco os moradores das proximidades dessas obras, assim como os trabalhadores das mesmas, como o fato do rompimento da barragem de Fundão em Bento Rodrigues, no município de Mariana, no Estado de Minas Gerais em novembro de 2015. Os exemplos, não param por aí, pois, cada vez mais são criadas situações de riscos, sociais, ambientais, tecnológicos em lugares em que antes os mesmos não eram uma realidade.

   Por um lado, isto se dá em função do conhecimento aperfeiçoado da natureza dos lugares, conforme diz Relph (1980), e, por outro lado, em razão da emergência de abastecimento do mercado com energia hidrelétrica ou com matérias-primas para as indústrias de base que transformarão, sobremaneira, a fisionomia dos lugares, das paisagens. A mobilidade permite que se criem novos territórios. Ainda assim o lugar antigo, ou que tenha passado por um processo de transformação, terá, por certo tempo, um significado para aqueles que o viveram.

   Na cidade ou no campo, os efeitos dos grandes empreendimentos são significativos. Decorrente da decisão de implantá-los, toda uma realidade pré-existente é submetida ao processo de mudança. Terras férteis têm sido inundadas e cidades inteiras têm sido submersas. Territórios são invadidos por forças exógenas. Além disso, tem havido sérias implicações na ictiofauna, nas florestas e outros sítios. Da mesma forma, não podem ser deixados de lado os casos de adoecimento de pessoas submetidas a esses processos, cujos efeitos podem ser maiores ou menores a depender do grau de envolvimento da pessoa com seu território; o nível de apego; os laços com o lugar.

   A destruição seja de uma cidade, de um povoado, um lugarejo “qualquer”, enfim, de um ambiente socialmente construído, em função da execução de um projeto ou decorrente de falhas na segurança dos mesmos é algo complexo. Sua reconstrução, contudo, parece-nos mais complexa ainda. Reconstruir esse ambiente não significa, simplesmente, construir casas e ruas, mas será, acima de tudo, a reconstrução do lugar que dará nova morada aos destituídos de seu lugar anterior.

   Do ponto de vista afetivo, não há como contabilizar o grau de intensidade dos impactos de grandes empreendimentos. O sentimento de apego ao território, os símbolos da vida cotidiana expressos pela identidade com as construções, com a própria casa, com a vizinhança, enfim, o lugar, estão todos ocultados no discurso que visa garantir a intervenção sobre o espaço. Entretanto, esse aspecto pode ser, talvez, a razão da permanência do grupo e mesmo da própria vida. Assim entendido, nossa convicção é de que a reconstrução do território, do lugar, destruídos por uma decisão de se executar um grande projeto, deve ser pensada como prioritária aos moradores atingidos por falta de segurança ou, melhor dizendo, por (ir)responsabilidade do empreendedor. O lugar é o conteúdo mais expressivo da vida cotidiana, pois é aí que o grupo se encontra e se sente protegido e reconhecido.

   Por sua vez, relacionamos a decisão por grandes empreendimentos a uma situação, no mínimo, constrangedora, em que grupos de moradores, ou populações inteiras, são submetidos a atitudes arbitrárias em função dessa decisão. São os conflitos gerados por essa opção que tem colocado em pontos extremos os responsáveis por grandes obras e moradores de lugares onde esses grandes empreendimentos são materializados. Nesse sentido é que falamos de Riscos, Perigos e Crises.

   De acordo com Lourenço (2015), baseado nos estudos de Lucien Faugères (1990), há que se pensar em uma hierarquia dos termos Riscos, Perigos e Crises, uma vez que os mesmos não são sinônimos e nem podem ser confundidos por motivos óbvios, ou seja, o esclarecimento dos termos podem permitir ações mais rápidas e eficazes no sentido de evitar catástrofes, as quais também não podem ser confundidas com fatalidade.

   A fatalidade, segundo os dicionários da língua portuguesa, diz respeito a acontecimentos imprevisíveis ou inevitáveis, como se fosse obra do destino que um fato ocorresse quando isso era impossível de acontecer. Na verdade, estamos falando de gestão e de fiscalização nos grandes empreendimentos porque todos, de forma menos ou mais contundente, expõem populações inteiras a riscos. Esses riscos podem ser de diferentes grandezas, mas o fato é que não podem ser negados sob a rubrica de segurança total, incapaz de falha. Assim, acontecem as catástrofes, ou seja, por má gestão e por, propositalmente, as autoridades que aprovam a execução de grandes obras não levarem em consideração as possibilidades e as reações adversas às suas decisões, tudo em nome de garantir mais lucratividade, uma vez que estamos falando de um sistema que sobrevive de lucros.

 

Referências

RELPH, E. Place and placelessness. London: Pion Limeted, 1980. 156 p.

LOURENÇO, Luciano. Risco, perigo e crise: pragmatismo e contextualização. In: SIQUEIRA, Antenora et al. (orgs.). Riscos de desastres relacionados à água - aplicabilidade de bases conceituais das Ciências Humanas e Sociais para a análise de casos concretos. São Carlos: RIMA, 2015, 512 p.

Vicente de Paulo da Silva vicentepht@hotmail.com

Formado em Licenciatura Plena em Geografia pela Universidade Federal de Uberlândia (1988); Mestre em Geografia pela Universidade de São Paulo (1995); Doutor em Ciência – Geografia – pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2004). Professor no Departamento de Geografia da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (1990-2005) e Professor no Instituto de Geografia da Universidade Federal de Uberlândia (2005 – atual). Pesquisas voltadas para a linha dos Efeitos e Riscos nos Grandes Empreendimentos.

 

 

Seus textos são:

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