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JACQUES LÉVY

GEOGRAFO

 

Em visita ao Brasil, o geógrafo francês Jacques Lévy ministrou a palestra “Justiça espacial: do conceito à prática”, no auditório da Pinacoteca de São Paulo. Professor da École Polytechnique Fédérale de Lausanne, na França, é conhecido por seus estudos sobre política e urbanismo. Acompanhados pela geógrafa Flávia Grimm, conversamos sobre suas pesquisas, suas opiniões e concepções sobre a política, a cidade e as abordagens da Geografia.

Entrevista

 

[Boletim Campineiro de Geografia] Professor, primeiramente agradecemos por ter aceito esse convite, que muito nos honra. Gostaríamos, por gentileza, que o senhor começasse nos contando sobre sua trajetória. Como o senhor chegou à Geografia?

Jacques Lévy: A Geografia era ensinada nos liceus na França — agora moro na Suíça, mas passei a maior parte da minha vida na França, em Paris —, e nos liceus franceses História e Geografia eram as únicas disciplinas das ciências sociais ensinadas. Então, para mim, a Geografia era uma porta de entrada para a análise do mundo contemporâneo. Não conhecia Sociologia, Ciência Política, Antropologia e é provável que se tivesse conhecido essas disciplinas teria escolhido Sociologia ou Ciência Política. Minha família era muito politizada, a discussão política era permanente, e a ideia de um empenho como cidadão era normal, considerada como evidente, então é provável que se a Ciência Política fosse ensinada no liceu, teria escolhido isso. Mas nos meus primeiros anos de ensino universitário, a SciencesPo, para mim, era um mundo burguês com o qual não queria ter relações (risos). Depois, com a imagem da Geografia dos anos 1970, para mim foi a descoberta de uma realidade muito negativa pelos meus critérios dessa época, porque me parecia epistemologicamente nula. Porque eu estava impregnado de marxismo… Não criticava isso. Em particular a mistura entre teoria e ideologia — que agora considero que não é uma coisa boa, que não faz clara delimitação entre o conhecimento e o empenho político. Mas o aspecto positivo é que, para mim, o marxismo foi como um objeto transicional — não sei se vocês conhecem esse conceito da psicanálise.

 

Transição?

Não, é mais preciso. É, por exemplo, um “urso de pelúcia” no qual se pode bater, considerado como um semi-humano, e a mão do adulto que permite estar mais seguro frente a uma realidade externa socialmente perigosa. É isso o objeto transicional. Para mim, o marxismo foi um objeto transicional para a abordagem das Ciências Sociais. Com esse conhecimento bastante prático, mas também muito abstrato de “O Capital”, as obras teóricas de Marx e Engels, olhar sobre a Geografia era muito crítico. Não só porque não era marxista, mas mais porque não era séria, não era coerente, consistente. Então eu e meus amigos hesitamos: valia a pena a Geografia, investir tempo e energia…? E por preguiça e sadismo (risos), a gente decidiu “lançar as bolinhas de gude”. E, para mim, nos anos 1970, a Geografia trouxe esse tipo de prazer. Eu era preguiçoso, porque era tão fácil, a Geografia era tão fraca que com as minhas armas era fácil demais destruí-la.

 

Que armas?

Só com uma certa agilidade formal, uma certa cultura na ciência social, que a Geografia nesta época era muito isolada do resto… A ideologia dominante nos geógrafos era dizer que a Geografia é, por natureza, interdisciplinar, então não precisa ter contato com outras [ciências].

 

Ah, porque ela já é interdisciplinar, então não precisaria dialogar com os outros.

São muitas as disciplinas que se pretendem a isso.

 

Você fez o curso na Sorbonne? Essa Geografia de quando você era estudante está acontecendo onde? É uma Geografia francesa?

Sim, nessa época só conhecia a Geografia francesa. Mas nos anos 1970 descobri o que começava a se chamar de New Geography inglesa, norteamericana e sueca — mas que tinha também defeitos do positivismo, a ilusão quantitativa, a ilusão de que houvesse leis gerais do espaço independentes do conteúdo. Claro que minha paisagem intelectual era limitada, no início, à França. E depois mudei um pouco de motivações e juntei outras, como o prazer de fazer teoria, de construir coisas. E num segundo tempo eu fazia também estudos empíricos para experimentar esse diálogo nunca fácil entre teoria e empiria.

 

O senhor estabeleceu frequentes diálogos com geógrafos brasileiros, destacadamente Milton Santos, tendo participado da elaboração de uma obra de divulgação do autor recentemente publicada em língua francesa, na qual afirma uma proximidade de temas de interesse, de orientações teóricas, convicções e opiniões. Gostaríamos de saber como o diálogo com Milton Santos influenciou a sua trajetória na Geografia e como o senhor vê a atualidade das contribuições dele para a Geografia.

Vocês entenderam que o elemento determinante para entender o meu percurso é preguiça (risos). Um dia, em Paris, Milton Santos apareceu à porta de uma reunião da revista EspacesTemps, porque nós tínhamos sido recebidos como um grupo de jovens interessante. Então assim começou a amizade com Milton. Minha primeira viagem ao Brasil foi em 1982, quando o Brasil tinha sido eliminado da Copa — havia uma atmosfera de desolação completa.

 

Você veio para o encontro de geógrafos em Porto Alegre?

Mas o entusiasmo em Porto Alegre… [o encontro da] AGB era uma feira tremenda, as ideias, a dimensão política era muito importante… Era antes das primeiras eleições diretas. Então tinha uma mistura inseparável de ideologia e preocupações científicas. Uma coisa que eu conhecia muito bem, que começava a criticar, mas era muito euforizante.

 

Era também a continuidade de todo um movimento de renovação, após 1978 houve um clima de mudanças…

Isso. Mas com Milton entendi que nós tínhamos gostos em comum, como o gosto pela teoria. Acho que Milton gostava ainda mais do que eu da teoria. Não gostava dos exemplos. Mas para mim teoria era muito importante, no entanto não era popular na Geografia. Era difícil. Eu era candidato a um posto no CNRS3 , e para destruir minha candidatura um membro do júri leu meus textos para fazer rir, porque eram incompreensíveis.

 

Você ganhou ou perdeu o posto?

Perdi. Na terceira vez eu consegui. E bom, havia esse gosto pela teoria e também a origem marxista. Milton e eu falávamos a mesma língua, era muito fácil dialogar. E também o fato de que, apesar de ser uma referência ao marxismo, Milton foi sempre independente no seu pensamento, nunca aceitou nenhuma corrupção intelectual em relação à política. Para mim isso era muito importante, porque na França e na Europa continental dos anos 1970 havia marxismo, mas muito ligado aos partidos comunistas. E eu, nos anos 1970, era membro do Partido Comunista Francês, mas desde o início com uma independência total, e por isso tive rapidamente problemas de coabitação com a lógica de um partido em geral, ainda mais um partido que pretendia ter ideias sobre teoria, sobre ciência, sobre tudo. Então [Milton] era um amigo muito precioso nesse sentido. E nós rapidamente descobrimos que não estávamos de acordo em tudo, mas era impressionante para mim a sua capacidade de ler várias coisas.

 

Alguns o criticam dizendo que é eclético.

Não foi nunca eclético, exatamente o contrário. Mas tinha uma capacidade para integrar contribuições diversas. De Marx, [Martin] Heidegger, [Henri] Lefebvre, mas também [John] Rawls… Então para mim era uma coisa muito positiva, a prova de que era possível construir uma teoria completamente pessoal, mas integradora.

 

O senhor citou Rawls… Pensando no conteúdo da palestra de hoje, inclusive, temos algumas perguntas sobre a questão da justiça espacial. Tendo em mente seu último livro, Réinventer la France4 , em que o senhor define justiça espacial, nos parece que em concordância com o conceito de justiça de Rawls (como distribuição igualitária de um certo número de bens considerados necessários a todos), e levando em conta também que podemos imaginar uma distribuição quase igualitária de alguns bens, como saúde, escola, mobilidade e força de trabalho em um sistema político muito centralizado ou mesmo ditatorial, como poderíamos analisar a situação da justiça espacial incluindo a dimensão do poder? Como o senhor trabalha esse conceito de espaço justo, considerando a política?

Acho, com Amartya Sen — ele não usa os mesmos termos, mas acho que concordamos em um ponto — que justiça não é só assunto de distribuição, mas de coprodução de bens e serviços. Curiosamente, Amartya Sen, que é um economista, não usa muito o conceito de bens, que vem da ciência econômica — de Samuelson. Um bem público não perde seu valor de uso quando o número de consumidores aumenta. Então outra característica do bem público é que é coproduzido pelos beneficiários — a sociedade considerada como um todo. Então me parece claro que a redistribuição é útil, mas a um certo momento não basta, porque os bens mais desejados pela sociedade contemporânea não podem ser redistribuídos, como educação, saúde e também espaço. Devem ser coproduzidos. Então a questão do poder… Justamente, se poderia dizer que com um poder centralizado, com um poder não distribuído, não se pode fazer o essencial da justiça nas sociedades contemporâneas. Porque as sociedades contemporâneas são sociedades de atores. Então qual é o alvo principal da sociedade? É reforçar, fortalecer, ativar, capacitar (empower), e isso é possível somente se os atores — ordinários, individuais, fracos, minúsculos — têm esse poder de fabricar parcialmente, e por isso nesse ponto eu encontro a tríade ator-ambiente-ação. E esse equilíbrio entre ator e ambiente me parece muito interessante, porque agora a possibilidade de destruir ambientes é evidente. Ao mesmo tempo que é evidente que os atores são pré-formados nesse ambiente. Essa situação é mais simétrica que numa sociedade agente, onde os papéis sociais são pré-  Só numa sociedade de atores com parcelas de poder é possível imaginar uma situação justa. Os bens mais desejados pela sociedade contemporânea não podem ser redistribuídos, como educação, saúde e também espaço. Devem ser coproduzidos determinados e o ator não tem muita margem de manobra na sua vida. A competência de estratégia biográfica do individual muda a situação. Ao mesmo tempo em que tomamos consciência, particularmente com os ambientes naturais, mas também com outros ambientes, da fragilidade dos ambientes. Os ambientes são englobantes, mas isso não quer dizer que são inoxidáveis, indestrutíveis. Por isso eu introduziria a questão do poder assim: que só numa sociedade de atores com parcelas de poder é possível imaginar uma situação justa.

 

O senhor diz que uma parte da justiça espacial é a distribuição, ou a redistribuição igualitária de alguns bens públicos. Sabemos que existem bens públicos que são muito caros, muito custosos; e não só isso, há uma questão política também, de empoderamento dos cidadãos. Gostaríamos, assim, de saber quais seriam os parâmetros para definir onde alocar esses bens públicos. Como fazer uma escolha de localização que seja coerente com a justiça espacial? E esses bens públicos que devem ser distribuídos são universais ou variam de acordo com o país?

A parte da contribuição de Rawls que me parece muito importante é a vertente processual (procedural) da justiça, isto é, que não se pode definir uma substância da justiça sem os atores de uma sociedade bem definida. Então é possível que emerja uma universalidade do que é considerado como justo, mas não se pode decretá-lo — só a posteriori e comparativamente poderemos demonstrar que, por exemplo, as pessoas de uma sociedade asiática têm a mesma concepção de justiça que os brasileiros. Então a ideia do que é justiça e política de justiça é uma escolha… Nem tudo pode ser feito ao mesmo tempo. A seleção do mais importante é claramente uma decisão, uma comensuração que só a sociedade mesma pode fazer. Não se pode ter uma visão transcendente. Acho que é isso que Rawls disse que me parece muito forte, muito útil. Agora, no meu laboratório, temos uma equipe — um doutorando e um cientista da computação — que estão fazendo um “serious game”, um jogo com indivíduos na Suíça sobre a geografia dos hospitais. O jogo propõe várias opções como, por exemplo, só um hospital, que é mais econômico, mais perto, mais no baricentro, mais perto de tudo, mas que força as pessoas das periferias percorrerem maiores distâncias. Ou uma abordagem mais utilitarista, com médias, ou uma abordagem max-min, tipo Rawls, que dá uma vantagem aos mais desfavorecidos. E é uma abordagem muito rawlsiana no sentido que não é um discurso de interesse pessoal das pessoas, elas são instituídas como políticos, como tomadores de decisão, como se fossem dirigentes do país. O que Rawls chama de “véu de ignorância”. Isto é, quando nós fazemos política, não é só um “lobbismo” pessoal, é também construir um método que pensamos que será bom para nós, mas também bom para a sociedade em geral. E isso é a lógica do jogo. Há também a possibilidade de fazer planejamento territorial para aumentar a eficácia do sistema, podendo dizer se seria melhor com a concentração ou a dispersão da população sobre o território. Há também uma última possibilidade, de dizer “quero mais dinheiro”, porque o jogo se joga sobre constante disponibilidade financeira. Se eles consideram que é preciso ter mais dinheiro no campo da saúde, é possível, mas deve-se dizer de onde será tirado o dinheiro. Não sei se respondi à pergunta, acho que sim. Acho que as ciências sociais experimentais devem ser muito mais desenvolvidas. Agora são essencialmente os economistas, com teorias criticáveis, que fazem experimentação. A ideia é construir uma situação in vitro mas que seja suficientemente realista para dar informações úteis. Sobre a universalidade, acho que é uma questão complexa. Porque a gente vem de uma herança filosófica ocidental em que a universalidade é entendida como um absoluto espacial e temporal, e entra em contradição com a história. E por isso, na tradição filosófica europeia, história é contingência e universalidade das essências é necessidade. Não há como gerir esse par, contingência x necessidade. É preciso destruí-lo. E considerar que a universalidade — se essa palavra tem sentido — é uma construção histórica. Não é nem uma essência metafísica, nem uma realidade natural, porque o conceito de humanidade, por exemplo, não existia antes do século XIX. Por exemplo, o início do pensamento humanitário, com os suíços, na batalha de Solferino em 1859, é uma coisa completamente nova, dizer que, além da batalha, há direitos dos feridos a ter uma assistência agora parece evidente, mas não era… Então eu acredito na relevância do conceito de universalidade, mas só como construção histórica. E, por exemplo, no âmbito da urbanidade, eu fiquei chocado com o fato de que em quase todas as cidades do mundo os problemas são realmente muito parecidos. Muito mais do que eu imaginava. Há processos de difusão, porque os urbanistas ajudam uns aos outros e se escutam, mas também porque os mesmos problemas geram as mesmas soluções. E uma abordagem culturalista do urbanismo me parece totalmente irrelevante. Escrevi um artigo um pouco polêmico sobre espaço público na Índia, se chama "Le passant unconsiderée". O artigo teve a reação de uma indianista que disse que “o conceito de espaço público não é o mesmo na Índia. Os ocidentais [o] querem impor…” E ela dá como exemplo um vagão de trem reservado às mulheres. Aqui também há vagões reservados, por razões de assédio às mulheres.

 

Temos no Rio de Janeiro também.

É um sinal, é a prova de que um espaço público não é possível nessas condições. Dizer que é legal para as mulheres entre si, sem homens, tudo bem, mas não é espaço público.

 

Agora, passaremos para uma questão que é muito presente hoje na Ciência Política e também na Geografia, que é o enfraquecimento dos Estados nacionais como resultado da globalização, o que em contrapartida gera um fortalecimento de outras unidades administrativas, como instituições subnacionais ou supranacionais, como é o caso da União Europeia. Gostaríamos de saber como você vê o papel de cada um desses níveis administrativos hoje no combate pela conquista da justiça espacial e qual seria a contribuição da Geografia para melhor compreender essa dinâmica de enfraquecimento do Estado nacional e de fortalecimento de outros níveis administrativos.

Agora na França houve uma reforma territorial com diminuiçãoFiquei chocado com o fato de que em quase todas as cidades do mundo os problemas são realmente muito parecidos. Muito mais do que eu imaginava. Entrevista: Jacques Lévy do número de regiões. Eu participei como pesquisador-cidadão nesse debate sobre a reforma desejada. Na Europa, particularmente, mas também na América Latina, com o peso do Estado nacional, — talvez na América Latina foi mais o nacionalismo que o peso do Estado por si — o Estado providência (Estado de bem-estar social) é muito forte. [Na Europa], no fim do século XIX, os Estados negociaram a obediência (allégeance) geopolítica da população para fazer guerra, dar o imposto de sangue contra o início do Estado social. É muito claro na unidade alemã, em 1870, quando quase ao mesmo tempo Bismarck reforçou o exército desse novo país que era o império alemão e iniciou todo um sistema de redistribuição. Então isso fez um sistema muito bem encaixado, que é muito difícil de quebrar, desfazer. Para a população pobre que se beneficiava mais deste Estado social, a relação com o Estado geopolítico e com a escala do Estado nacional era evidente, então na Europa, na constituição europeia, é claro que os beneficiários do Estado social veem com muita reticência a perspectiva de renegociar o contrato social em outra escala. Por isso não é evidente ultrapassar a escala nacional. Mas apesar disso, é claro que vimos, com a Constituição Europeia, mas também com a globalização em geral, uma relativização da escala nacional. É claro que isso favorece a escala mundial e as escalas subnacionais na França. E os movimentos de regionalização e governo urbano me parecem ligados de uma certa maneira a essa relativização do Estado-nação. No Brasil, a refederalização, por exemplo, seria uma aposta. Porque o Brasil é um país federal, mas talvez com margem de progressão, articulação dos níveis

 

O que, aliás, é a próxima pergunta, sobre a federação. Nessa linha que você vinha falando, sobre as novas formas de organização política que vão surgindo, o senhor discute bastante em sua obra o federalismo com seu papel no reconhecimento das várias escalas políticas. Gostaríamos de entender quais as possibilidades que o senhor enxerga para uma aproximação da noção de federalismo e como pensar a organização política considerando fenômenos como a metropolização, que geram outras necessidades de organização do poder.

Quase todos os países democráticos e desenvolvidos são organizados de um modo federativo, exceto poucos países europeus — a França sendo a caricatura do Estado centralizador, que tem muitas dificuldades para ultrapassar o imaginário espacial herdado do período imperial (quando digo imperial quero dizer não o império exterior, mas o Estado nacional como império). O Estado nacional francês foi um pequeno império com um centro que conquistou países que não queriam fazer parte da França. Era uma conquista colonial do século XII. E na Europa há países que não são oficialmente federais, mas que estão avançando sob uma orientação ou inflexão federalista, como Espanha e Grã-Bretanha. Parece-me lógico que em uma sociedade de atores cada indivíduo pertença a várias sociedades. Na mesma escala há várias sociedades, e há várias escalas. Então há pelo menos uma sociedade local, uma sociedade regional, menos evidente — pra mim a região seria um espaço biográfico. Imagino o estado de São Paulo: é evidente que a região é o estado de São Paulo, que tem todas as oportunidades que um habitante pode desejar. Num estado do Nordeste é menos evidente, porque o Brasil é um dos raros países onde há grandes cidades, como Salvador, que têm um Produto Interno Bruto inferior à média nacional. Isso é extremamente raro na escala mundial. Berlim é também uma exceção, porque há a Berlim oriental, e é uma situação muito particular. Pode-se discutir a real capacidade da capital do estado ser um recurso suficiente para corresponder, responder positivamente à estratégia individual dos habitantes, e por isso há migração dos nordestinos para São Paulo. Mas é claro que deveria ser um objetivo, um alvo de uma política federal do espaço, espaço justo… Uma região, nação… Que não existem em todas as partes parece-me que é preciso não universalizar o conceito de nação. Na África subsaariana isso não tem sentido, e a obrigação pós-colonial de criar Estados piorou a situação. O Estado africano que melhor funciona é um Estado que não existe: Somaliland, um Estado não reconhecido, mas com uma rede de celular excelente (risos). Democracia. Nenhuma violência. Incrível. Foi uma secessão da Somália, da parte inglesa. Com a generalização da violência nos anos 1990, se auto-organizou, de um modo para mim um pouco misterioso, mas o resultado é interessante, realmente. Para mim, a melhor notícia que poderia acontecer aos Estados africanos é o seu desaparecimento. Porque o Estado é um problema, não é a solução. No Congo, por exemplo. Porque o Estado é uma presa para grupos — não são guerras civis no Congo, porque uma guerra civil tem como aposta [obter] o poder unificado — é só uma competição violenta entre grupos políticos, como é possível com a eleição. As guerras na África são guerras com o Estado sendo o alvo. O recurso concentrado é muito atraente; se o Estado não existisse, essa presa não existiria. E poderíamos imaginar a construção de um Estado não tão mau.

 

Esse Estado que está lá é que é o problema, a presa? Não o Estado em si?

Exato. Não é o Estado em si, acho que o Estado é útil. Mas esse tipo de Estado, nesse contexto, é mais nocivo do que útil. E construções continentais, como o Mercosul — é interessante notar que até agora a União Europeia, com muitas dificuldades, é a única construção realmente política não violenta. Não sei como interpretar, como exceção ou como prefiguração. O que vocês acham do futuro do Mercosul? Acham que será um real governo com impostos, redistribuição…?

 

Talvez não o Mercosul, mas isso está sendo encaminhado pela Unasul (União das Nações da América do Sul, com todos os países da América do Sul), que é uma aproximação mais política, com integração dos exércitos… Mas há um parlamento no Mercosul (Parlasul). A Unasul é um pouco mais ampla, é uma tentativa de construção. É mais difícil no Brasil porque temos uma distância maior dos outros países latino-americanos, há uma desigualdade interna bem grande…

Por exemplo, em um país como a Argentina, completamente devastado pelo nacionalismo, é difícil imaginar uma aceitação da supranacionalidade agora. A Europa não pode dar lições aos outros, mas é interessante ver que é um processo muito lento, com meandros… E, finalmente, a sociedademundo precisa de um governo. Tem problemas globais, então precisa de soluções globais.

 

Para finalizar: em 2013, o tema da mobilidade urbana esteve muito em evidência no Brasil, e na cidade de São Paulo está muito em evidência esse debate, principalmente em relação ao uso do transporte coletivo em detrimento do automobilismo. Também em relação à gratuidade do uso do transporte coletivo, a “tarifa zero”. Em sua opinião como geógrafo, ou a partir de um diálogo com outras ciências sociais, como é possível contribuir — por meio, talvez, de conceitos como mobilidade, acessibilidade e afins — para o debate sobre transporte público e justiça social nas cidades, hoje em dia?

A substância da urbanidade é feita de ligações fracas. Esse é um conceito inventado por um sociólogo estadunidense, Mark Granovetter, em 19736 , não a propósito do espaço, mas me parece muito bem adaptável ao espaço. Há um mal entendido sobre espaço público, porque muitas pessoas dizem que com o espaço público não se reduzem as desigualdades sociais, econômicas. É verdade, mas não é a sua função, não é a sua utilidade. O espaço público tem só o mérito de tornar visível a cidade a si mesma, aos seus membros, e dar informações concentradas sobre escalas maiores que o espaço mesmo; é um pequeno espaço que é como um concentrado de outros. Por isso é como uma disponibilização de recursos, em geral gratuitos, que existem na sociedade, e também uma confiança do indivíduo na sociedade-mundo precisa de um governo. Tem problemas globais, então precisa de soluções globais. A cidade, particularmente o espaço público, até agora não foi ultrapassada, porque é um espaço multissensorial . Por exemplo, em 2005, na França, queimaram ônibus, queimaram escolas, bens públicos. Foi terrível, e só nos subúrbios, guetos, subúrbios homogêneos, não nos centros urbanos, onde também há pobres, mas com uma mistura social muito mais importante. Quando você é um pobre em um bairro, em uma região urbana mista, você não tem a mesma percepção da sociedade, das possibilidades, das potencialidades, das virtualidades oferecidas pela sociedade. Então o espaço público é também um recurso cognitivo, não só ético ou político, porque a serendipidade me parece uma coisa muito mais importante do que podemos imaginar, porque é o contrário da técnica. [A serendipidade] são todos os processos cognitivos que não pressupõem uma predefinição do alvo. Porque techné significa que você já conhece o alvo e inventa processos para atingilo. No caso da serendipidade, não existe o alvo, e se descobre o alvo a posteriori. A internet também é um extraordinário dispositivo serendipiano. Mas a cidade, particularmente o espaço público, até agora não foi ultrapassada, porque é um espaço multissensorial, que permite mobilizar todos os sentidos. Por isso me parece muito importante, mais do que a gratuidade do transporte. A gratuidade do transporte público não me parece tão… É necessário que os transportes públicos sejam considerados como bens públicos, isto é, uma coprodução com o usuário — que é a sociedade como um todo — mas, para mim, a ética da liberdade é também uma ética da responsabilidade. Parece-me que pagar um pouco é bom para mostrar que você é coproprietário do sistema, que não é só um direito, como respirar. Até o ar é produzido — não é um bom exemplo — mas… A ideia de que seria um dado sem contrapartida. Isso não existe na sociedade. Uma sociedade justa não é uma sociedade na qual os ricos pagam e o pobre não paga. Uma sociedade justa é aquela na qual todos pagam, com a mesma taxa de esforço. É muito importante sair da visão caritativa. O problema da esquerda no Brasil, mas também na Europa, é a herança católica, do catolicismo caritativo, que é aristocrático, porque considera que os pobres não têm deveres. A capacidade de ter deveres é uma competência humana, uma característica da humanidade.

 

Mas às vezes, dependendo do país, da cidade, do lugar, a gratuidade pode ser um momento necessário até se alcançar outra coisa — como são as cotas no Brasil.

Sim, concordo também com o exemplo. Para mulheres, para minorias étnicas, pode ser um momento. Mas a gratuidade do transporte público… Flávia Grimm: No Rio de Janeiro, as crianças que estudam em escolas públicas têm o transporte gratuito. Aqui em São Paulo isso vai começar também, o prefeito Fernando Haddad está tentando começar… Jacques Lévy: Eu sou partidário da alocação universal — como um salário, uma renda mínima, mas sem necessidade de trabalhar. Cada um recebe a mesma quantidade de dinheiro, e se você trabalha, adiciona [a esse montante]. É muito interessante porque você evita a tematização do Estado social. Você recebe uma renda — mas só uma — e então você não pode mendigar outras coisas. Porque na Europa, particularmente na França, há um sistema muito complicado que incita os pobres a estarem sempre em posição de pedir coisas

 

Sobre o entrevistado Jacques Lévy: geógrafo pela Universidade de Paris VII e doutor pelo Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), tendo desenvolvido uma tese intitulada “O Espaço Legítimo”. Atualmente é professor na École Polytechnique Fédérale de Lausanne (EPFL), na Suíça, onde coordena o laboratório Choros, realizando pesquisas em temas como a urbanidade, a mundialização, a Europa e a Geografia Política. É fundador e coordenador da revista EspacesTemps e autor de diversos livros, entre eles “L'espace legitime” (1994) e “Le tournant géographique” (1999). Em 2013, publicou o livro “Réinventer la France: Trente cartes pour une nouvelle Géographie” e lançou seu primeiro filme, “Urbanité/s”. 

Quem é?

 

Um dos maiores GEÓGRAFOS do Mundo em etrevista exclusiva ao Boletim Campineiro

2010 - present

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